“Vivemos numa sociedade jovencêntrica”, diz Gisela Castro, especialista em longevidade

A pesquisadora especialista em envelhecimento e longevidade fala sobre Idadismo e diz que é uma armadilha cair no modelo de que “velho certo” é o “velho juvenil”. Ela também comenta a pressão da “juventude eterna” às mulheres. “A mulher se torna socialmente mais velha muito cedo, bem antes do homem”

A velhice é um fenômeno predominantemente feminino. Há muito mais mulheres envelhecendo no mundo do que homens. E isso acontece por uma série de razões. Elas se cuidam mais, vão mais ao médico e, em geral, são menos atingidas pela violência – a não ser, claro, a violência doméstica. No Brasil, mais da metade da população atualmente é formada por mulheres de 35 anos ou mais. “Somos maioria numérica, mas ainda somos minoria social, isso que é doido”, começa a contar Gisela Castro, estudiosa expert no assunto da longevidade e do envelhecimento. “A mulher se torna socialmente mais velha muito cedo, bem antes do homem”, completa.

Mas se, com sorte, todos vamos ficar velhos um dia, por que se marginaliza tanto os longevos? Esse não deveria ser o objetivo final de nossa trajetória? Pois em um mundo no qual o mito da juventude eterna parece um elixir diluído na água em que bebemos, envelhecer é quase uma “falha moral”, nas palavras de Gisela. Principalmente para as mulheres. “Fala-se tanto em diversidade de gênero e étnica, mas muita gente esquece da diversidade etária. O preconceito do Idadismo é o último socialmente aceito. E são as mulheres que estão comprando essa briga”, explica a pesquisadora.

Gisela é Doutora em Comunicação e Cultura pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), tem pós-doutorado em Sociologia na Goldsmiths College, University of London, e dá cursos sobre o tema no Centro Cultural B_arco, no bairro de Pinheiros, em São Paulo. Em entrevista, ela explica conceitos como longevidade e jovencentrismo, e mapeia também como o mundo está sendo obrigado a enxergar quem já passou dos 50 anos de idade. Confira abaixo:

Marie Claire: O significado da palavra envelhecimento mudou se comparado a 50 anos atrás? O que é envelhecer no século 21?
Gisela Castro: Acabou de sair uma pequisa grande na Finlândia em que compararam centenas de idosos e juntaram dados de 30 anos atrás – não de 50, você não precisa ir tão longe para notar as diferenças. Comparando os dados, hoje estamos envelhecendo melhor (ainda que o Brasil não seja a Finlândia). Melhor no sentido de mais saudáveis, capazes de resolver problemas, mais alertas. Já por aqui, um estudo brasileiro feito pela Fundação Oswaldo Cruz também confirma isso, mas a grande diferença é que no Brasil temos um quadro muito grave e cruel de desigualdades sociais. Falar em envelhecimento no nosso país implica, necessariamente, em falar da diversidade. E falar de longevidade significa entender que mais pessoas estão vivendo muito.

MC: Você pode explicar um pouco melhor esse raio-X do envelhecimento especificamente no Brasil?
GC: A gente tem no país idosos com excelente potencial financeiro e acesso à saúde, educação, etc. Para muitos das classes favorecidas é uma geração que está chegando à idade avançada com preparo, inclusive financeiro. Mas, também tem uma série de pessoas nessa faixa etária muito desassistida, que não tem acesso a saneamento básico, pessoas que possuem problemas seríssimos de saúde, que nunca conseguiram tratar dos dentes, por exemplo. As desigualdades são gritantes no Brasil e a gente não pode silenciar a respeito delas. De qualquer maneira, temos visto, ainda que de forma pequena, a importância das pessoas mais velhas nos meios de comunicação. Até pouco tempo atrás era como se essas pessoas não existissem. Vivemos numa sociedade muito centrada no jovem, muito jovencêntrica.

MC: Que conceito é esse, o jovencentrismo?
GC: É um imperativo social que faz com que você precise se manter jovem, aparentar assim em qualquer idade. De modo que o “velho certo”, o “velho correto”, é o que se apresenta assim. Então, a gente vê nas reportagens os velhos superlativos, aqueles que pulam de paraquedas aos 90 anos, fazem tatuagem aos 80, sabe? Claro que isso existe, mas não é uma receita de bolo e nem sempre foi assim. O historiador Nicolau Sevcenko nos mostra que lá no século XIX o chique era parecer uma senhora, um senhor. Os homens usavam tintura na têmporas para parecerem grisalhos, mais respeitáveis. Já as mocinhas que se casavam vestiam-se de uma forma senhoril, porque isso significava mais respeito e dignidade. Isso era antes dessa ênfase no jovencentrismo, que tem muito a ver com a pressão e a presença da indústria anti-envelhecimento. Ela é poderosíssima e multimilionária.

MC: Como a ideia da “juventude eterna” afeta, em especial, as mulheres?
GC: Gasta-se rios de dinheiro em propaganda para convencer a mulher de que é dever moral eliminar qualquer sinal de envelhecimento, sobretudo do seu rosto. Há toda uma série de procedimentos (mais ou menos invasivos), produtos começam a ser comercializados dentro desse ideário da aparência jovem e de que mostrar-se envelhecendo é uma falha quase que de caráter, uma falha moral. E isso é muito grave. É claro que há movimentos contra essa onda, mas ainda são pontuais e minoritários.

“O jovencentrismo é um imperativo social que faz com que você precise se manter jovem, aparentar assim em qualquer idade. De modo que o ‘velho certo’, o ‘velho correto’, é o que se apresenta assim””

MC: Entrando nesse recorte de gênero, como está sendo envelhecer para a mulher agora? Isso nos alcança de que forma?
GC: Envelhecimento é um processo que, de fato, é atravessado por muitos fatores e o gênero é um deles. O envelhecimento da mulher difere daquele sentido pelo homem por uma série de fatores. Quando estou falando de envelhecimento, não falo do biológico ou cronológico. Mas, sim, de um processo social e cultural. Hoje se percebe que há uma mudança em função do tamanho desse segmento que está chegando à idade avançada e é um mercado consumidor nada desprezível. O mercado começa a puxar esse olhar de forma menos invisibilizadora do que acontecia antes. Mas a publicidade ainda é ocupada, majoritariamente, por pessoas jovens.

MC: As mulheres acima dos 50 anos são as que estão mudando o conceito de envelhecer. Eram as mesmas inseridas no movimento do feminismo dos anos 60 e 70, e que agora estão, de novo, à frente de seu tempo enfrentando o Etarismo. É isso mesmo?
GC: Sim e é muito importante. O que não pode acontecer é a gente sair de um modelo juvenil e cair num modelo superlativo, aquele em que o “velho certo” é o “velho juvenil”. O preconceito do Idadismo é o último socialmente aceito, porque ninguém fala sobre ele. E são as mulheres que estão puxando essa briga: eu me filio a elas, a minha pesquisa é uma militância também contra o Idadismo, ela tem essa função de trazer o preconceito para o debate social. Mas a gente só consegue combater aquilo que a gente enxerga.

MC: O Etarismo ou Idadismo explica a desvalorização das pessoas mais velhas nas políticas públicas de países como o Brasil, por exemplo, inclusive durante a pandemia de Covid-19?
GC: Essa crueldade dos discursos sociais em relação aos mais velhos lamentavelmente foi vista não só por aqui, onde temos um desgoverno particularmente troglodita em curso. Um altíssimo número de pessoas idosas foi atingido pela Covid-19 no mundo inteiro, prova de que há, sim, um descaso, sobretudo as pessoas abrigadas em instituições de longa permanência, que não foram devidamente protegidas e isoladas. Em Portugal, na Espanha, mesmo na Suécia, que é um país riquíssimo e social-democrata, o ministro da Saúde teve que ir a público pedir desculpas pelo descaso. O que aconteceu foi uma carnificina, se chama de “velhocídio”. Isso é eugenia, é nefasto. A gente esquece que cada pessoa mais velha que se perde, é um mundo de sabedoria, experiências e memórias que também acaba. Fora o fato pouco divulgado da quantidade de pessoas mais velhas provedoras de filhos e netos. Quando elas desaparecem, famílias inteiras ficam sem renda, sem amparo financeiro. Muitas avós são, na verdade, arrimos de família. Os números são expressivos, sobretudo no Brasil, que possui um mercado de trabalho instável. As gerações mais novas ou não conseguiram emprego, ou foram demitidas na pandemia. Enquanto as mais velhas tiveram acesso a outra época dos regimes de trabalho e de aposentadorias.

MC: Por que se tem tanto medo de envelhecer?
GC: A convivência entre gerações foi sendo desestimulada nos últimos tempos. Perdeu-se a riqueza que é conviver com avó, avô, tia-avó, tio-avô, aquelas mesas do almoço de domingo. Elas foram desaparecendo nesse ritmo alucinante da vida atual. E esse jovencentrismo é tão nefasto que, ao premiar apenas o jovem em qualquer tempo, de qualquer forma, dissemina também para eles que estão sempre corretos, que qualquer coisa diferente não vale. Ao mesmo tempo, ensina aos mais velhos que se quiserem continuar sendo valorizados, têm que imitar aos mais moços. Ensinar os mais velhos é “chato”, a pessoa mais velha é “lenta”, ninguém tem paciência com o tempo lento. Nem o farol de trânsito, na rua, leva tempo suficiente para uma pessoa idosa conseguir atravessar normalmente.

MC: Como é possível mudar a aversão ao envelhecimento, principalmente para as brasileiras, tão ligadas à questão da aparência? Produções culturais e de entretenimento podem ajudar nessa transformação de padrões?
GC: A verdade é que ainda se vê idosos e idosas em papéis caricatos na publicidade, na televisão. Há o uso de um humor meio grosseiro, o cruzar da tênue fronteira entre o humor e o deboche. Ter 40 anos já é ser velhíssimo na indústria publicitária. No caso da mulher, ela se torna “socialmente mais velha” muito cedo, bem antes do homem. A gente se habituou a ver, por exemplo, mulheres serem substituídas nas bancadas dos telejornais, enquanto os apresentadores são eternizados, porque homem grisalho é algo “bonitão”, charmoso. Isso tem mudado um pouco. As indústrias da moda e da cosmética começaram a prestar atenção nisso depois de tanto apanhar. Hoje você já vê modelos bem mais velhas desfilando ou estrelando campanhas.

“A mulher se torna socialmente mais velha muito cedo, bem antes do homem. Hoje isso tem mudado um pouco. Você já vê modelos bem mais velhas desfilando ou estrelando campanhas”

MC: Existem países no mundo se preparando para o aumento de pessoas longevas em suas populações? Que sociedades podem servir de exemplo para essa mudança de pensamento quando todos entenderem que as pessoas tendem a chegar, cada vez mais, à velhice?
GC: Sim, existe uma iniciativa da ONU que se chama “Cidade Amiga do Idoso” na qual centros urbanos (espalhados pelo mundo inteiro) se preparam para o envelhecimento populacional. A Europa já era um continente envelhecido há muito tempo, então costuma ser mais amistosa à pessoa longeva do que a gente por aqui. Mas é preciso lembrar que o Brasil envelhece muito rapidamente e isso acarreta uma série de questões de ordem pública. Uma delas é adequar os espaços públicos para essa população que cresce. Há uma tendência importante ao urbanismo atual, que não diz respeito só a adequar a calçada para o idoso, o deficiente, chama-se acessibilidade, e acessibilidade é universal. Significa tornar nossa cidade um local onde possa ser acessível para todos, e a gente está muito longe disso no Brasil.

MC: Para encerrar nosso papo, chamou a atenção, recentemente, um comentário da atriz Sharon Stone, que falou em uma entrevista para um programa de TV não procurar mais um parceiro para namorar. Ela argumentou que os homens simplesmente não estão no mesmo nível emocional que as mulheres e que isso causa muito desgaste para ela. Há inúmeras mulheres maduras que estão sozinhas, com a vida amorosa congelada. Existe saída para essa encruzilhada de gerações e de mudança cultural?
GC: Sharon Stone pode ter desistido de achar um parceiro interessante porque, de uma maneira geral, a galera prefere as mais jovens. Se você é uma mulher, mesmo “um monumento” como é a atriz, mas passou a idade considerada atraente, fica restrita, muito restrita e isso é triste. Há uma naturalização muito grande disso, mesmo por parte das mulheres jovens. Essa não é uma briga só das maduras, é de todos nós. Durante muito tempo, o feminismo não tinha essa bandeira e a inclusão etária ainda tem uma posição bastante marginal. O que você vê agora são pessoas que sempre foram militantes na vida chegarem na sua idade avançada, sem abrir mão dessa militância, como no caso de Jane Fonda, por exemplo. E se falarmos de consumo, esta é a primeira geração na chamada “terceira idade” que foi socializada consumindo produtos desde sua tenra idade. São consumidoras. E aí exigem, trazendo explicitamente suas demandas e fazendo com que o mercado abra o olho e comece a enxergar suas necessidades. Acredite ou não, as pesquisas de mercado paravam aos 35, no máximo aos 40 anos de idade. Agora não mais: é ridículo fazer isso.

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Fonte revistamarieclaire
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