MPB4 tem lançados registros inéditos de cinco shows feitos nos anos 1970 sob a barra pesada da censura

Em 3 de outubro de 1973, o grupo fluminense MPB4 subiu ao palco do Teatro Fonte da Saudade, na cidade do Rio de Janeiro, e estreou o show República do Peru.

Com intencional duplo sentido, o título do show aludia tanto ao Brasil dos anos de chumbo quanto à rua do bairro carioca de Copacabana onde estava situado o pequeno apartamento alugado por Aquiles Reis, Milton Santos (o Miltinho), Ruy Faria (1937 – 2018) e Antônio José Waghabi Filho (1942 – 2013) – o cantor e arranjador vocal conhecido como Magro – para não terem que voltar de madrugada para Niterói (RJ), cidade natal do quarteto.

O show República do Peru seria importante na trajetória desse grupo cujas origens remontam ao ano de 1962. Afinal, pela primeira vez em anos, o MPB4 estaria em cena sem a presença de Chico Buarque, quase um quinto cantor do grupo.

Só que a temporada de um mês do show República do Peru acabou frustrada e encurtada. Não pela alta qualidade artística do espetáculo, mas pela ação da censura do governo militar que asfixiava o Brasil naquele ano de 1973. Atenta aos sinais políticos do repertório selecionado por um grupo sempre situado à esquerda, a censura proibiu o show na segunda semana da temporada.

O show República do Peru foi apresentado somente sete vezes. Tempo suficiente, no entanto, para que fosse feita uma gravação ao vivo do espetáculo. Com boa qualidade técnica, esse registro chega ao mercado fonográfico 46 anos após a estreia no primeiro dos cinco CDs da excepcional caixa Barra pesada – MPB4 ao vivo nos anos 1970.

Capa da caixa ‘Barra Pesada – MPB4 ao vivo nos anos 70’ — Foto: Divulgação / Discobertas

Produzida pelo pesquisador musical Marcelo Fróes para o selo Discobertas, a partir de mergulho no acervo do MPB4, a caixa reúne cinco inéditos registros de shows feitos pelo MPB4 sob a barra pesada da censura.

Os álbuns ao vivo República do Peru (1973)Rua República do Peru (1974)República de Uganda (1975), Recital (1976) e MPB4 no Sáfari (1976) saem em CD que trazem encartes com textos e as reproduções das letras, fundamentais para o entendimento do mote de cada show.

Além do imensurável valor histórico dessas cinco gravações inéditas, a caixa – fabricada com tiragem limitada de 500 cópias – registra para a posteridade o vigor musical com que o grupo se apresentava em cena no auge artístico do quarteto.

Parte expressiva da produção da música brasileira foi registrada nas vozes emblemáticas do MPB4, harmonizadas com requinte por Magro em arranjos que valorizavam músicas como O crime (Jards Macalé e José Carlos Capinam, 1969), um dos 20 números do bem amarrado roteiro de República do Peru, montado pelos integrantes do quarteto com Chico Buarque e com Antonio Pedro, diretor do show.

Capa do CD ‘República do Peru (1973) – MPB4 ao vivo’, um dos cinco títulos da caixa lançada com tiragem de 500 cópias — Foto: Divulgação

Coerente com a ideologia social de um grupo que jamais se calou, o MPB4 levantou a voz nesse show através de músicas como O velho(Chico Buarque, 1968) e o samba Depois que tá ruim chegou nunca mais melhorou (Capoeira, 1971) – recados do quarteto sobre a ditadura em vigor no Brasil na época do show.

Tanto que o segundo samba tinha o título citado sagazmente ao fim de outros números, como os sambas A velhice da porta bandeira(Eduardo Gudin e Paulo César Pinheiro, 1973) e Última forma (Baden Powell e Vinicius de Moraes, 1972).

O maroto caco “Tem boi na linha” inserido no Partido alto (Chico Buarque, 1972), cantado com ginga, também sublinhava a mensagem do show.

O encadeamento no roteiro de Pois é, pra que? (Sidney Miller, 1968), Pesadelo (Maurício Tapajós e Paulo César Pinheiro, 1972) e Beco do Mota (Milton Nascimento e Fernando Brant, 1972) – música repleta de dissonâncias espertas ao fim do número – adensam o clima e o show para dizer através da música o que era preciso ser dito.

Parafraseando versos lapidares de Pesadelo, a censura cortava um show do MPB4 e o grupo fazia outro. A propósito, o show apresentado no segundo dos cinco CDs da caixa, Rua República do Peru (1974), simboliza essa resistência.

Capa do CD ‘Rua República do Peru (1974) – MPB4 ao vivo’ — Foto: Divulgação

Trata-se de versão remodelada do show anterior, com a entrada de músicas como Sinal fechado (Paulinho da Viola, 1969) e Não existe pecado ao sul do Equador (Chico Buarque e Ruy Guerra, 1973), e com o título modificado para Rua República do Peru para explicitar a citação do logradouro de Copacabana e acabar com o duplo sentido do nome.

Com roteiro novamente assinado pelo MPB4 com Chico Buarque e com o diretor Antonio Pedro, o show Rua República do Peru estreou em junho de 1974 no Teatro da Galeria, no Rio de Janeiro (RJ), onde cumpriu temporada até novembro sob a vigilância da censura.

Felizmente, essa censura surda aos apelos democráticos fechou os ouvidos para a crítica ácida feita por Chico Buarque – então sob o pseudônimo de Julinho da Adelaide – à política econômica do governo em Milagre brasileiro, uma das músicas deste show de 1974 em que o MPB4 mostrou que jamais seria calado.

Se a barra era pesada, os shows de Aquiles, Magro, Miltinho e Ruy Faria na década de 1970 tinham mais peso ainda. (Cotação: * * * * *)

♪ Aviso aos navegantes: as resenhas dos outros álbuns da caixa Barra pesada – MPB4 ao vivo nos anos 1970 serão feitas em textos que serão publicados ao longo dos próximos dias.

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