Um ano de SAF no Brasil: um processo ainda em amadurecimento

A primeira onda de SAFs veio para resolver problemas pontuais e, aparentemente, cumpriu bem seu papel nos casos de Cruzeiro e Botafogo

Chegamos ao primeiro aniversário da Lei da SAF. Como tudo na vida, há alguns temas para celebração e outros para preocupação.

Vamos então tratar mais do momento que gera evolução. Já escrevi muito sobre os riscos e oportunidades. Mas como avaliar o cenário depois desse primeiro ano, sem viés de vendedor?

Pois bem, como era esperado, a primeira onda de SAFs veio para resolver alguns problemas pontuais, casos de Botafogo, Cruzeiro e Vasco. E, aparentemente, cumpriu bem seu papel, pelo menos em relação aos clubes comandados por Ronaldo e John Textor.

Investimentos, contas em dia, reestruturação de passivos em andamento, alguma dor de cabeça aqui e ali, mas, no geral, eles estão dentro da expectativa.

No Cruzeiro, temos visto mudanças mais rápidas, com gestão mais apurada, cuidado na comunicação e o retorno à Série A encaminhado. Em 2019, quando o clube foi rebaixado, eu disse que ele precisava ser refundado. E foi isso que permitiu a recuperação. É só o primeiro passo, mas parece o início de uma caminhada bem segura.

No caso do Botafogo, ainda temos alguns tombos no caminho. Seja porque a torcida esperava mais do que o clube poderia entregar – e eu alertei o tempo inteiro para que as expectativas fossem ajustadas – seja porque o acionista parece um pouco deslumbrado com o futebol.

Textor precisa de ajuda de gente especializada, consultorias e apoio de profissionais que entendam de futebol, principalmente, do nosso futebol. Essencialmente, ele precisa entregar a chave do clube para uma equipe autônoma e pronta. Quem chegou tem capacidade, mas ainda falta muita coisa ser ajustada para que possamos ouvir menos o nome “Textor” e mais “Botafogo”.

A SAF no Vasco ainda está em fase de desenvolvimento. Então ainda é cedo para falar sobre a 777 e sua estratégia. Vou pular essa parte por enquanto.

O jornalista Rodrigo Mattos escreveu uma coluna apontando que há 24 SAFs constituídas no Brasil. Dentre os nomes, temos o América-MG, que já foi vendido e “desvendido”, e o Coritiba, que estrutura a SAF dentro do processo de recuperação judicial em que se encontra.

Também há o Figueirense, que retoma o modelo de clube-empresa, mas agora sob olhos mais atentos de outros stakeholders, como a Jive Investments, entre outros.

Mas a grande maioria das SAFs é de clubes de menor expressão, e isso não me espanta. Elas representam oportunidades de pessoas que transitam no mundo do futebol para regularizarem suas condições.

Agentes que usavam diversos clubes para alocar seus atletas agora têm a oportunidade de manter todos sob sua gestão, sem risco. Clubes que já tiveram algum nome na época dos campeonatos brasileiros com mais de 90 clubes podem agora sonhar em renascer. Associações com “donos informais” ganham a chance de terem donos de fato.

Tudo certo, e era essa a primeira leva de operações esperada.

Recentemente me perguntaram: “Qual é o momento ideal para um clube virar SAF?”. A resposta é uma só: “Depende”.

Depende do que se espera, de qual é o projeto, de qual a necessidade. Um clube pode virar SAF porque está desesperado atrás de dinheiro para sobreviver ou porque precisa organizar sua vida societária.

Ou mesmo o caso muito comentado do Bahia com o grupo City, que parece ser o único até o momento feito da forma correta: abrir mão do controle em nome de alguém que é especialista em gestão de futebol e que tem um plano de crescimento, não de salvação.

Sinceramente, nem Textor, nem 777 são do mundo do futebol. Eles chegaram ao esporte e estão construindo algo. São investidores de ocasião. A SAF é uma oportunidade para todo mundo que souber criar uma estrutura eficiente. Mas, para que tenham sucesso, elas vão demandar gente especializada – o que aparentemente vemos no Cruzeiro e que, espero, veremos no Bahia.

O atual número de 24 SAFs após um ano me parece até pequeno. Esperava mais, especialmente aquelas relacionadas à formalização de controle de clubes menores. Claramente, não há espaço para clubes grandes neste momento, pois os dirigentes acreditam que seus negócios valem mais do que realmente valem. Então, após os casos que estavam no limite da sobrevivência, não há investidores prontos e ávidos para comprar SAFs no Brasil.

Aliás, se todos que dizem ter contatos e conversas com investidores estiverem falando de iniciativas reais, teríamos nossos mais de 600 clubes virando SAF rapidamente. Mas, na realidade, muitos só estão aqui olhando e tentando entender o cenário. Não há interesse de fato, pois ainda não há um mercado de fato. E ninguém sabe quando haverá.

Isso porque há dois tipos de acionistas de clubes: aquele que quer ser dono e, geralmente, só aporta dinheiro no clube (como por exemplo, Abramovich no Chelsea, os qataris no PSG e tantos donos de clubes italianos) e os que querem investir em futebol, como o fundo Elliott no Milan.

Esses fazem conta: compro por 10, vendo por 50 e, nessa hora, realizo meu lucro. Mas isso só acontece em mercados maduros, com liquidez e onde é possível termos alguma medida de valor dos clubes. Isso não existe no Brasil. E não é possível dizer quando e se existirá.

Logo, comprar clubes no Brasil tem pouco apelo para fundos de investimento que pensam numa saída organizada por meio de uma venda futura. Quem chega antes bebe água limpa, fato. Mas você pode ficar preso numa ilha como na série “Lost”: com um clube e sem ter o que fazer com ele. Não se iluda: clube de futebol não dá dinheiro e nem distribui dividendos ou lucros. A forma de retornar investimento é negociando corretamente a compra e a venda do clube.

Para aumentar o interesse, precisamos de maior controle externo da estrutura, especialmente um fair play financeiro que permita a competição em bases justas, sem atrasos ou dívidas.

Neste momento, não falaria em segunda ou terceira onda de SAFs. Elas seguirão acontecendo de forma recorrente, muito mais pelos benefícios que permitem para a reorganização de dívidas do que pelo apelo de encontrar um investidor. Até porque nem todos precisam virar SAF ou ter investidores. Não preciso nem “chutar” isso, pois é óbvio, especialmente para quem analisa e conhece os mercados pelo mundo.

Nos próximos aniversários da Lei da SAF teremos certamente um ambiente mais maduro, com a pacificação da lei em relação às dívidas, evoluções de mercados que possam transformar nosso futebol num mercado de fato, e não num eldorado de bangue-bangue.

Como nem tudo que reluz é ouro, temos que tomar cuidado com os vendedores de pirita, para que ninguém caia nessa armadilha.

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Fonte infomoney
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