Do futebol ao MMA: a saga do jovem da Guiné que chegou ao Brasil escondido em navio

Fã de Ronaldo, Mohamed Camara sonhava ser jogador de futebol quando aportou em Salvador, após ficar seis dias sem comer. Hoje, é lutador profissional de MMA e treina com José Aldo, no Rio

Foi na cidade de Boké, na Guiné, aos 14 anos de idade, que Mohamed Camara assistiu à Copa do Mundo de 2006. Fã de Ronaldo, o Fenômeno, o jovem sonhava ser como o então atacante da seleção brasileira. O destino – em fevereiro de 2009 – levaria o guineano para o Brasil, em busca de uma vida melhor. Navegar era preciso para deixar o continente africano. E os bons ventos não só o conduziram a um novo país, mas também o levaram para outro rumo profissional: ele trocou a bola pelo octógono.

A propaganda de viagens de cruzeiro, repletas de conforto e luxo, em nada se parecem com a saga de Mohamed. No porto da Guiné, ele se escondeu em um navio cargueiro após ouvir notícias de que havia pessoas que se tornavam refugiadas ao chegar em outro país. Treze dias de viagem e o Oceano Atlântico o separavam do Brasil.

– Meu tio trabalhava no porto, e eu vendia churrasco lá. Fui me informando e falei: “Isso é uma boa ideia. Por que não posso pegar um navio assim?”. Eu via carros descendo de dentro do navio, e neles estava escrito “Salvador”. Foi a primeira vez que ouvi falar em Salvador, na Bahia. Era direto para o Brasil, eu já pensei logo: “Ronaldo Fenômeno (risos)”. Havia um segurança, e perguntei a ele: “Posso entrar, irmão? Ele respondeu: “Tem quanto aí na mão (risos)?”. O que eu tinha no bolso eu dei a ele. Ele falou: “Se vira, eu não te vi, você não me viu”. Entrei dentro do motor de um guindaste. Assim que eu ouvi o cadeado fechando no navio, falei: “Já entrei no Brasil, não importa o que as pessoas vão dizer, estou no Brasil” – conta Mohamed, em entrevista ao “Esporte Espetacular”, dez após sua odisseia ser retratada no programa “Globo Repórter”.

A sensação de alívio e esperança tomou conta de Mohamed quando o navio zarpou rumo a Salvador, a capital brasileira mais semelhante aos costumes do continente africano. A aventura, porém, estava apenas no início, afinal, a viagem demoraria quase duas semanas. Foram seis consecutivos sem comer e uma sede tão grande quanto a vontade de sobreviver.

– A minha travessia foi muito difícil, muito mesmo. Fiquei seis dias sem comer. Era viver ou morrer. O que mais incomodou mesmo não foi o que não comi, mas o que eu bebi. Não tinha água lá pra mim, eu encontrava resto de água que ficava na garrafa, com limo. Tem gente que fala que eu tenho sorte. Que nada! Tenho sorte pelo meu mérito, pelo meu esforço.

Antes de o navio aportar no Brasil, Mohamed foi descoberto e levado ao capitão da embarcação. Apanhou, mas confessa que toda a dor sumiu ao ver a bandeira brasileira tremular em Salvador.

– O capitão quis saber em qual porto eu entrei. Quando eu falei que eu era da Guiné, levei um tapão na cara. Quando cheguei no Brasil, eu estava na Baía de Todos os Santos. Eu vi a bandeira do Brasil no porto… Irmão, que emoção! Meu Deus do céu, estou no Brasil! – relembra, empolgado.

Mohamed Camara saiu da Guiné em 2009 e só retornou para visitar, em 2018 — Foto: Arquivo Pessoal

Adoção, futebol e MMA

 

Em solo brasileiro, Mohamed Camara, então com 17 anos, foi levado ao Juizado de Menores. O jovem – que não conheceu a mãe biológica e perdeu o pai, vítima de uma bala perdida durante uma guerra civil – estava sozinho em Salvador. A adoção viria quarto anos mais tarde, através de uma desembargadora, que o acolheu.

– A minha chegada repercutiu na Bahia. Falavam que o menino que chegou era diferente, especial, carismático.

Mohamed Camara e a mãe adotiva, na Bahia — Foto: Arquivo Pessoal

Em Salvador, Mohamed – que sabia falar francês e um dialeto da Guiné – foi para a escola, onde se formou no Ensino Médio. O sonho de jogar futebol estava em andamento – integrou a equipe sub-20 do Bahia. Entretanto, afirma que, aos poucos, perdeu o encanto com o esporte e decidiu treinar boxe, afinal, era brigão desde a infância e costumava levar a melhor.

– Não teve nenhum motivo especial, só não sentia mais tesão no futebol, achava luta mais atraente. Uma vez eu estava pensando: “No que eu sou bom? O que eu faço que pode me levar ao sucesso?” Eu sempre briguei, era bom nisso. Falei: “Quero realizar meu sonho, vou lutar, então”.

 

Em 2012, na academia Champion, liderada pelo renomado Luiz Dórea, treinador de Robson Conceição, medalhista de ouro nos Jogos Olímpicos de 2016, e do ex-campeão do UFC Junior Cigano, Mohamed se encontrou no boxe. Uma lesão no ombro o afastou dos treinamentos por cerca de três anos. Neste ínterim, trabalhou como servente em shopping, garçom e até em uma sorveteria. Após se recuperar, voltou a investir na nobre arte.

– Quando eu cheguei na Champion, eu nem sabia o que era jab. Olhava para o amigo do lado e fazia igual. Eu era todo duro, o Dórea me lapidou. Cheguei sem saber nada, mas me imaginei no topo. Vendo o Cigano e Anderson no MMA, isso me incentivou mais ainda. O MMA me atraiu.

 

A guinada na carreira profissional de Mohamed Camara aconteceu em 2017. A namorada – atualmente, esposa – foi transferida para trabalhar no Rio de Janeiro. O atleta a acompanhou e, sem lidar com outras modalidades de combates, passou a treinar na Nova União, equipe de José Aldo, ex-campeão do peso-pena do Ultimate. Lá, desabrochou para o esporte. Adicionou o muay thai, o jiu-jítsu e o wrestling ao seu boxe afiado. E naquele mesmo ano estreou no MMA profissional.

– Até então eu era boxeador. Eu virei lutador de MMA no Rio, antes disso, não treinava wrestling, muay thai, kickboxing… Foi uma evolução incrível. Sair na porrada é muito bom, é gostoso (risos). No meu primeiro dia na equipe teve sparring. Eu cumprimentei o José Aldo. Pensei: “É o José Aldo, porra!” Ele passou, falou comigo, me deu a mão para cumprimentar. O cara é humilde demais.

Dono de um cartel composto por duas vitórias e uma derrota – justamente em sua estreia -, Mohamed espera entrar no octógono seis vezes em 2021. E não quer saber de demora para ingressar no UFC: acredita que estará no plantel até dezembro do próximo ano.

– Eu acho que até o fim do ano que vem estarei no UFC. Tem muita coisa boa chegando, mandei mensagem para o Dana White, porque ele me segue no Instagram. Fico bem feliz quando ele entra nas minhas lives. O objetivo é fazer três lutas até o meio do ano, depois ver se entro no Contender ou no UFC. Não quero esperar, quero entrar logo. Não vou quero ser empregado do UFC, aquele que fica lá para se manter. Quero fazer história, ser campeão e um dos maiores de todos os tempos. Quero deixar um legado.

Sem esquecer as suas origens, Mohamed sonha com a independência financeira para poder ajudar o povo da Guiné. Ele sabe que centenas de pessoas deixam a cidadezinha de Boké em botes rumo à Europa em busca de uma vida melhor – e boa parte não tem a mesma sorte que ele. Por isso, enxerga o esporte como um canal de esperança para as crianças do seu país.

– Meu objetivo é ganhar dinheiro para construir um centro de treinamento de esportes, com boxe, MMA, jiu-jítsu, wrestling, natação, todos os esportes. Muitos africanos morrem na travessia de bote para a Europa. O esporte, para mim, é a maior educação que existe. O esporte salva vidas. Esse é o meu objetivo.

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Fonte globoesporte
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